terça-feira, 30 de março de 2010

Simplesmente


Fui ver "Simplesmente eu, Clarice Lispector" (com Beth Goulart). Senti uma saudade imensa de Bethânia.

Beth Goulart, ao final da peça, fala para o público palavras tão delicadas, no sentido que tenhamos um cuidado extremo em relação ao silêncio (externo e, principalmente, interno), para ouvirmos a nós próprios e ao outro.

Ah, o silêncio. Minha companhia fundamental.
 
Deixo aqui esse trecho do livro "Sopro de vida", que não está na peça, mas é recorrente para mim:

"Luto não contra os que compram e vendem apartamentos e carros e procuram se casar e ter filhos. Mas luto com extrema ansiedade por uma novidade de espírito".

E, também, a deslumbrante "Tarde" (Milton Nascimento e Marcio Borges), nessa versão especialíssima com Milton e a participação de Wayne Shorter.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Lembra


Lua adversa
                                                                 (Cecília Meireles)
 
Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha
 
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Linda, linda: "Lembra de mim" (Ivan Lins e Vitor Martins)

terça-feira, 23 de março de 2010

Tão longe dessa estrela


Eu
                                                                    (Fátima Guedes)



Eu sou uma voz, eu sou uma figura
Sou o meu sonho de o ver realizado
Hoje eu descobri o mais incrível
Sou quase inacessível
Estou tão longe dessa estrela

E um dia tem muitas horas
Muitas horas, muitas horas
Viver é esbarrar com elas e senti-las
No quarto, no espelho, no colchão
A minha solidão
Não deixa que elas me toquem
 
Estrela não tem luz própria
Quase ninguém sabe disso
Eu sinto muita saudade
Do brilho dos meus amigos
Sinto tanta falta de você
Se eu pudesse querer
Queria você comigo

Essa linda canção ("Eu") na voz da autora e de Leonel Laterza

domingo, 21 de março de 2010

Bate é na memória

eu quis ser seu par
não deu
somos primos

quis ser só pra você
seu ímpar
não deu
somos pares
                                                                  (Marco Antonio Figueiredo)


"Memória da pele" (João Bosco-Wally Salomão), na voz de Bethânia.

terça-feira, 16 de março de 2010

O segredo da tolerância

Foto: Ana Paula Rêgo - (Show Morro da Urca - março)


Fui ver "O segredo dos seus olhos" (de Juan José Campanella), no Estação Ipanema. Tudo maravilhoso: direção, interpretação, roteiro, diálogos...e que final!

Vamos, então, falar de tolerância entre nós dois. Entre nós todos.

Tolerância (Ana Carolina e Antonio Villeroy)
http://www.youtube.com/watch?v=yW3VBnvosSI

Como água no deserto
Procurei seu passo incerto
Pra me aproximar a tempo

O seu código de guerra
E a certeza que te cerca
Me fazem ficar atento

Não me importa a sua crença
Eu quero a diferença
Que me faz te olhar de frente
Pra falar de tolerância
E acabar com essa distância entre nós dois

Deixa eu te levar
Não há razão e nem motivo pra explicar
Que eu te completo e que você vai me bastar
Eu sei, tô bem certo de que você vai gostar
Você vai gostar

Como lava no oceano
Um esforço sobre-humano
Pra recomeçar do zero

Se pareço ainda estranho
Se não sou do seu rebanho
E ainda assim te quero

É que o amor é soberano
E supera todo engano
Sem jamais perder o elo

E é por isso que te espero
E já sinto a mesma coisa em seu olhar

domingo, 14 de março de 2010

Fui ver, no Kinoplex Leblon, "A single man" (de Tom Ford) que, sei lá porquê, recebeu aqui o mui inventivo título..."Direito de amar". Cara, qual o problema de manter o original? Que cafonice, remete àquelas radionovelas antiquérrimas, tipo "O direito de nascer". Na contramão da elegância toda que é o filme, belíssimo, com uma abertura emocionante, luz linda e trilha sonora maravilhosa.



   
 





Vi, também, "Coração louco" (Scott Cooper), este traduzido ao pé da letra ("Crazy heart"). Bem bonito.



 
 
 
 
Deixo aqui o lindo poema que ganhei - "Bebido o luar" -, de autoria da poeta porguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:

Bebido o luar, ébrios de horizontes,
Julgamos que viver era abraçar
O rumor dos pinhais, o azul dos montes
E todos os jardins verdes do mar.

Mas solitários somos e passamos,
Não são nossos os frutos nem as flores,
O céu e o mar apagam-se exteriores
E tornam-se os fantasmas que sonhamos.

Por que jardins que nós não colheremos,
Límpidos nas auroras a nascer,
Por que o céu e o mar se não seremos
Nunca os deuses capazes de os viver.

   


As fotos feitas do casarão no Jardim Botânico que hospeda a exposição "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome".


 
 
 
 
 
 
E "My Funny Valentine", na voz inebriante de Chet Baker:
 

quarta-feira, 10 de março de 2010

Peixinho Chanel nº 5


Apetitosa a foto acima, não? Mas está faltando um prato. Fui almoçar no Sushi Leblon. Pedi como entrada lulas grelhadas. Não tinha lula. Escolhi, então, atum com molho picante. Zero de atum. A terceira tentativa assinalou, entre outras opções, fatias de peixe branco, azeite trufado e flor de sal. Que chegou à mesa exalando o inconfundível cheiro de peixe...hum...ou vencidíssimo ou fruto de um raro cruzamento com gambá.

Provamos o acepipe, à guisa de que não restasse a menor dúvida de que o alimento estava, de fato, estragado. Tese, como esperado, confirmadíssima. Falei com o garçom, que atribuiu o miasma à presença do azeite trufado. E com aquele semblante irônico, como se não fôssemos capazes de distinguir entre uma coisa e outra - um peixe deteriorado e um suposto aroma tão requintado que fugia a nosso destreinado paladar.

Pedi, polidamente, para ele levar as lâminas do animal em decomposição ao chef, que, lá de dentro, atestou que estava tudo certo com o prato. Minha vontade foi me levantar da mesa e solicitar que o tal chef mastigasse (e engolisse), na minha frente, a rara iguaria, pelo visto, reconhecida apenas por papilas gustativas mais sofisticadas do que as nossas.

Mas, em consideração a uma super advogada canadense - que, em seu último dia no Brasil, havia pedido para o almoço acontecer num restaurante japonês (minha sugestão era outra) -, preferi, simples e educadamente, pedir la addition e migrar para outro endereço gastronômico.

Só um adendo: o atum (na foto), que, inicialmente, estava em falta, "chegou" magicamente à casa. E à nossa mesa. Devidamente deixado em grande parte no prato.

A conta chegou, sem a presença de nenhum representante do restaurante que viesse, ao menos, tentar saber o que estava acontecendo. A notícia dada pelo garçom de que a iguaria não compreendida em toda a sua refinada explosão de aromas não seria cobrada foi revestida de um tom que explicitava estar a casa a fazer um favor, e não mais do que sua obrigação.

Não foi a primeira vez que, em restaurantes ditos bacanas, tentaram me convencer que estragado seria sinônimo de algo tão espetacularmente refinado a que os comensais jamais atingiriam. Empáfia, sem dúvida, é o ingrediente mais contaminador que um restaurante pode oferecer aos clientes.

Para desanuviar o espírito, fotografei as flores lindas na rua Dias Ferreira.
 
   
E deixo esse trecho de Museu do ciúme, do livro Chão de terra, de Rosiska de Oliveira.




O ciúme tem cheiro que machuca e fundo musical que faz chorar. É um grande autor de romances de terceira, capaz de inventar uma vida inteira, personagens, tirados do nada, que se movimentam como marionetes, a quem o enciumado dita as falas e sobretudo as respostas, lá onde se confessa a traição.







O ciúme é um mundo à parte, um inferno privado onde alguém se instala para viver uma vida de voyeur. Esse mundo tem uma lógica própria, perversa, em que a relação ameaçada pelo desgaste e pelo tédio reacende na suspeita e no ódio".  

segunda-feira, 8 de março de 2010

Saturday night fever

 Pau ferro - árvore no Museu Chácara do Céu

A programação de rua no sábado começou na Travessa do Leblon, porque queria comprar um novo Partimpim 2 para dar de presente. Aproveitei para garantir uma cota de mimos para mim também: os livros "Chão de terra" (de Rosiska de Oliveira), a nova e deslumbrante edição de "Alice no país das maravilhas" (com tradução de Nicolau Sevcenko e ilustrações de Luiz Zerbini) e o CD "Noturno Copacabana" (de Guinga), que traz uma música que eu estava procurando na internet para postar aqui (a sublime e doce "Senhorinha", com letra de Paulo César Pinheiro).

Achei um vídeo em que Guinga - esse, cuja sensibilidade musical é indizível - conta, de forma emocionante, como nasceu essa levitante canção, aqui interpretada por ele e a linda Zezé Gonzaga.



Na sequência, finalmente consegui ver a exposição de Cildo Meireles no Museu da Chácara do Céu, em Santa Teresa.  


 
 
 
 
 
 
 
 
Na descida, uma parada na rua do Lavradio, onde, como em todo primeiro sábado do mês, corria solta a feirinha. Numa mesinha de calçada do botequim Informal, enquanto me dedicava a um cachorro quente incrementado com mostarda preta e uma diferente (e ótima) pasta de pepino adocicada, esquadrinhava a paisagem, me convencendo de que os timbres escuros que manchavam o céu já não me renderiam boas fotos. Então, um raio, depois outro, mais outro...Falei: vamos embora!

Era por volta de cinco da tarde. Não houve tempo nem de pedir a conta. Debaixo do temporal, o pessoal que ocupava as mesinhas do lado de fora do bar (assim como os donos das barraquinhas da feira) evaporou na atmosfera. Nós, um grupo de 7, tratamos de nos aninhar sob o toldo do estabelecimento, quando o gerente bradou: "vamos fechar a porta, porque a água vai entrar aqui".

Incrédula de que, com apenas alguns minutos de aguaceiro, ele poderia decretar que não só a rua iria transbordar como invadir boteco adentro (uma vez que se situa em patamar acima do nível do logradouro), quando vi, estava sentada na escada entre os dois pisos junto com a galera - o único espaço livre de que dispúnhamos. Que sorte! Em pouco tempo, assistia desse que eu já considerava um camarote de primeira classe, seco e seguro, com direito a chope, as águas avançando com vontade no primeiro piso do bar, em ondas escuras que expunham com clarezas líquidas e sólidas a maneira como cuidamos de nossa cidade.

Rua (ou rio) do Lavradio

Impossível não relacionar à cena inquietante as catástrofes da natureza tão mais apavorantes que estamos vendo diariamente no mundo todo. Do meu degrau, contudo, espreitava pelas frestas do corrimão o desenvolver de cenas de um microcosmo, por força das circuntâncias, obrigado a ser aquele, deslocando meu olhar de mesa em mesa. Aparentemente, os que estavam no andar de baixo, com água imunda pelas canelas, assemelhavam-se a estar num cruzeiro marítimo em que alguma espuma, fortuitamente, molhara o convés.

Numa delas, mulheres em pé nas cadeiras, dançavam ao som de sambas que iam improvisando como se não houvesse amanhã.

Em outra, onde parecia celebrar-se um aniversário, havia um casal de 20 e poucos anos em franca desarmonia. Ele, um garoto bonito, que insistia em continuar ali bebendo - embora já bem alterado, sem os sapatos, as meias encharcadas naquele rio encorpado de detritos. Nela, tudo era mais pesado e devastador do que a tempestade lá fora. Tentava a todo custo levar o menino de lindos cabelos pretos para casa. Houve um momento de ternura entre os dois, em que ela, tão novinha, era mais mãe do que mulher dele.

Imaginei que essa situação de conflito se suceda noite após noite. Na mesa, havia duas mães com seus bebês. Logo intuí também que ela, olhando para aquelas crianças, desejasse ter a sua com o tal rapaz bonito, e levar uma vida tranquila em família.

Como que chacoalhada por um pensamento que me alertava que eu não tinha nada a ver com a vida alheia e que tinha limite a profissão repórter, desviei minha atenção daquele frame. Por fim, lá pela meia-noite, conseguimos descer para uma mesa, porque alguns clientes haviam ido embora mesmo na enxurrada.

Fiquei em frente à mesa do tal menino. E lá, já não estava a mulher dele. Ele havia preferido permanecer por lá, em companhias, digamos, mais animadas. Imaginei aquela menina em casa, a esperar por ele, na escuridão do quarto. Aflita, sem saber se iria voltar. Pronto, lá estava eu a entabular fabulações sobre a vida do próximo.

Resumo: era uma da manhã quando pudemos, por fim, deixar o restaurante com o baixar das águas.

Diante do narrado, não foi possível dar à Mimi, que comemorava 10 anos de vida no Clube Marimbás àquela tarde, o disquinho da Calcanhotto. Mas desejo a você, minha amiguinha, o construir de seus sonhos numa cidade limpa e cada vez mais bela, num país que respeite direitos e deveres e num mundo que, afinal, se irmane.

                                                     
      Parque das Ruínas

quinta-feira, 4 de março de 2010

Ilusão à toa


Ah, Johnny Alf is gone...

Deixo essa linda canção dele, que há tempos vinha pensando em postar aqui.

"Ilusão à toa", com Gal & Elis.
http://letras.terra.com.br/gal-costa/263557/

Olha, somente um dia
Longe dos teus olhos
Trouxe a saudade do amor tão perto
E o mundo inteiro fez-se tão tristonho

Mas embora agora eu te tenha perto
Eu acho graça do meu pensamento
A conduzir o nosso amor discreto

Sim, amor discreto pra uma só pessoa
Pois nem de leve sabes que eu te quero
E me apraz essa ilusão à toa

terça-feira, 2 de março de 2010

Apenas um sonho

Leblon, segunda

Revi, na TV, "Foi apenas um sonho" (Sam Mendes), a que já havia assistido no cinema no início do ano passado. Denso, forte, triste. Kate Winslet, magnífica. "É preciso coragem para viver a vida que você quer", diz sua personagem.  

Imediatamente, estabeleci uma ponte entre o filme e a coluna de Martha Medeiros no Globo domingo passado, intitulada "E se tivesse sido diferente?"

Escreve ela: "É comum pensarmos que, ao ficarmos parados no mesmo lugar, sem agir, sem mudar nada, estamos assegurando um destino tranquilo. Engessados na mesma situação, é como se estivéssemos protegidos de qualquer possível ebolição que nos inquiete. Não deixa de ser estratégia, mas falta combinar com o resto da população. As pessoas que nos cercam sempre interferirão no nosso destino. Se dermos uma guinada brusca ou permanecermos na rotina, tanto faz: o mundo se encarregará de trocar as peças de lugar nesse imenso tabuleiro chamado dia a dia".

Gosto muito da Martha. Não é fácil traduzir um pensamento evidentemente sofisticado - que, em tese requereria um nível maior de aprofundamento - numa linguagem acessível ao arco de leitores do Globo. E ela consegue isso, numa escrita fluente, bonita, reflexiva, sem que caia nas polarizações rebuscamento x simplificação da linguagem.

Mais adiante, ela conclui: "Algumas vidas até podem ser tristes, outras são desperdiçadas, mas, num sentido mais absoluto, não existe vida errada".

Dentro do clima melancólico e chuvoso, a belíssima "Canto triste" (Edu Lobo e Vinicius de Moraes), com Edu e Sergio Godinho.