domingo, 18 de outubro de 2009

Existirmos, a que será mesmo que se destina?



Não digas: “o mundo é belo”.
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: “o amor é triste”.
Que é que tu conheces do amor?
Não digas: “a vida é rápida”.
Como foi que mediste a vida?
Não digas: “eu sofro”.
Que é que dentro de ti és tu?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?

(Cecília Meireles)


Ah, como foi que mediste a vida?...Sempre me intriga quando alguém declara, em tom de orgulho: "Tenho 40 (ou 51, 64, 79, 203) anos". E mais que depressa completa: "Muito bem vividos". Tenho para mim que não se vive bem ou mal (não falo pelo prisma material, por suposto): vive-se, simplesmente. O que já é coisa pra caramba, convenhamos. Bem e mal podem ser conceitos bastante relativos, subjetivos. Até porque estou convencida de que - salvo em casos de autossabotagem crônica - damos o melhor de nós em quaisquer dos momentos vivenciados. Ah, eu poderia ter feito melhor...Não, não poderia. Tanto que não o fiz. Naquelas dadas condições, com os recursos mentais, emocionais, psicológicos, espirituais e materiais, enfim, com o conjunto de circunstâncias específicas daquele instante, só fiz o que pude fazer. E foi o melhor, mesmo que impregnado de equívocos, sofrimentos, maluquices.

A tese não se destina a justificar a infinidade de erros cometidos ao longo do caminho. Mas para identificá-los - e tentar corrigi-los - existem a consciência e a disposição interior sincera de querer burilar a própria persona, intensificar a busca do que realmente importa. Culpas e arrependimentos por si só, sem ação que os convertam em luzes, nos levam nenhures. Antes (tentar reconstruir) tarde do que tarde demais. É uma luta feroz repelir a autocondenação, por inerente à cultura humana. Mas há que se travá-la, sob pena de sucumbirmos a sua sombra. Estagnante.

A impressão que me dá é de que com esse pequeno complemento - o "bem vividos" -, o ser, defrontado com a finitude, parece buscar desesperadamente a remissão por envelhecer na confirmação (para si? para os outros?) de uma pretensa vida "muito bem aproveitada".

Mas de que, afinal, está se falando com "aproveitar a vida"? Com esses "bem vividos"? Significarão que a criatura em questão torrou fortunas em cassinos transatlânticos? Teve todas as mulheres/homens do mundo? Acumulou um patrimônio financeiro sólido? Aprendeu oito línguas, sem contar o javanês? Moveu céus e terra no afã de saciar uma saudade que teimava em arder, carburar, por entender, enfim, que não adianta tentar tirar da cabeça o que não se consegue tirar do coração? Formou uma família de comercial de amaciante lavanda? Conheceu o Oriente Médio? Fez o Caminho de Compostela? Experimentou os esportes mais radicais? Esteve constantemente atento aos sinais de alegria e, sobretudo, de dor do outro? Velejou em ilhas paradisíacas? Dedicou os anos a sonegar o fisco? Amou com entrega absurda? Jantou todas as noites no Antiquarius? Reviu conceitos? Laborou em ações de responsabilidade social? Logrou ser o mais esperto entre seus pares? Lutou verdadeiramente por seus ideais - que expressão demodé, mais ainda que a própria demodé? Entendeu - e os fez - que amigos são o grande e inalienável bem da vida? Plantou uma árvore, escreveu um livro, teve ou adotou um filho?

Afinal, o que pretendem sofregamente sinalizar com isso? O fato é que, sem querer entrar em juízo de valor - e mais do que nele entrando -, quem eu consideraria capaz de contabilizar brilhantemente anos "bem vividos" nunca nem sequer ousou pronunciar tamanha temeridade. São os que, penso eu, vivem para entender, transformar e engrandecer a vida, em nosso planeta, nosso país, nossa cidade, nossos dias.

Bem sei que vós, que sois gentis, podeis, em socorro dessa gente, ponderar que o tal do "bem vividos" refere-se ao ponto de vista de quem fala. Ah, mas nesse caso, que eles façam a fineza de acrescentar tal apêndice ao final de suas declarações. Criaturas obtusas precisam de tudo explicado nos mínimos detalhes. Porque, solta, a expressão "bem vividos", para quem tem dificuldade de abstração como eu, significa, simples, e rigorosamente, nada.

Onde chegarei nessa busca por lapidar minha procura toda? Aqui: http://www.youtube.com/watch?v=lRGMJiB6O8o.



3 comentários:

  1. Monica,

    Teu texto flui impiedosamente belo pelas águas caudalosas de uma das faces que acometem a condição humana.
    E ainda por cima Cecília Meireles que ajuda sempre a nos entendermos.
    Chegar de viagem e dar de cara com seu pensamento é um grande alento.

    Beijos,
    Ana Paula

    ResponderExcluir
  2. Gentileza, teu nome é Ana Paula Bousquet!
    Bem vinda à terrinha e, sempre, sempre, a nossa padaria.
    Um beijo.
    M

    ResponderExcluir
  3. hummm!
    perguntas num domingo de sol
    nesta padaria sempre há do melhor.
    e aí vai outra:já ouviste alguém dizer tenho dezoito anos muito bem vividos?
    ao envelhecer,vamos ficando feias/os,chatas/os e más/maus,me diz meu pai,que não é nenhum dos três.
    suspeito que a questã seja permanecer livre...até das certezas.
    nossa,estou com saudade de você.
    beijo

    ResponderExcluir

Comentário