sábado, 20 de fevereiro de 2010

Carta da libertação (para Julieta e Romeu)



Minha querida, meu querido,

Estudo minuciosamente os cabos da minha memória numa busca dramática para voltar a conectá-los à configuração-padrão em que se encontravam antes. Antes de alguém atravessar a minha vida como um avião numa cumulus nimbus.

Por mais que as aulas na universidade hoje fluam em modus piloto automático, elas, por sorte, ainda constituem a base de sustentação mínima e necessária a que não sobrevenha um desparafusamento completo dos pinos de uma estrutura que, diga-se de passagem, nunca foi lá essas coisas: minha cachola, como bem sabeis.

Pelo menos, enquanto discorro sobre Adam Smith, Keynes e cia. para uma massa sem rostos de futuros doutores, minha zona mental arraiga-se a essa transmissão burocrática e encadeada de teorias, como forma de proteger-se das faixas avassaladoras que teimam em nela ingressar – e durar.

O problema é que aqui, já dentro do carro, dirigindo em silêncio na volta para casa, o compressor centrífugo reaviva-se com disposição intensificada, como a querer compensar o longo horário comercial em que precisou manter-se represado. E, aí, minha cara, meu caro, sai de baixo, porque não há doutrina econômica nesse mundo capaz de conter a irracional explosão que deflagra a reabertura dessas comportas.

Saudade do tempo em que orientar uma tese acadêmica era só orientar uma tese acadêmica. E não essa prensagem absurda das funções cognitivas na tentativa patética de extrair um grau de concentração que, francamente, não há. À maneira de se espremer azeitonas para engarrafar óleo virgem, mal comparando. Saudade de uma vida normal, vamos dizer assim.

O que é vida normal? Ora, vida normal é quando a pessoa acorda...ou melhor, recomeçando, a pessoa dorme – toda noite e a noite inteira -, acorda, toma café, sai para trabalhar, trabalha, volta para casa, janta, namora, ou janta fora, ou vai ao cinema, ou sei lá o que. E nos finais de semana toca para a praia, para a locadora de vídeos, para o Maracanã, viaja, dá pipoca a macaco, enfim, qualquer coisa em que se acha graça quando nos alinhamos às condições regulares de temperatura e pressão.

Até onde eu saiba, minha amiga, meu amigo, vida normal é mais ou menos isso, com um ou outro toque de acontecimento extraordinário, o que faz parte. Mas não esse torvelinho em que não se cabe direito dentro do próprio corpo, e a alma parece ejetar-se desencontradamente em movimentos involuntários para além das regiões limítrofes ao ponderável. Afinal, nada mais justo que ela, alma, lute a todo custo para romper o confinamento abusivo a que se vê, a sua revelia e a contragosto, submetida.

E, assim, minha garota, meu rapaz, vamos tateando as camadas fronteiriças da escuridão, sendo noite ou dia, que, camuflados, mal se distinguem nas sombras das paredes. A pessoa começa a variar, falar sozinha (há barulho de porta de elevador se abrindo e não sei se é você – e não, não é). E, mais grave, dá para sofrer alucinações (pois te vejo entrando no mar, sorrindo nos restaurantes, lendo na poltrona, saindo do banho, teu corpo lindo e em abandono na cama).

Prezada, prezado, mas de que mesmo falava esse professor versado em amor ausente? Amor profundo e - com que onipresença! – ausente... O fato é que agora, já em casa, sinto, mas precisamos interromper a comunicação. Alguém me chama no quarto. Ah, sim, já ia me esquecendo: como se não bastasse, nesse estado de saturação dos sentidos, também se ouvem vozes.

Com doçura,

William.

PS: Estou de tênis novos, comprados no Stratford-on-Avon-Shopping Center.

E deixo-vos essa preciosidade:

"Everytime we say goodbye" (Cole Porter), com Simply Red.


 

8 comentários:

  1. Genial! Genial! Absolutamente genial!
    Que dizer?
    Te adoro, Monica.
    Luciano

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  2. Eletrizante como a queda de um raio,que em um segundo dizima o que atinge,
    Revolto como um oceano em dia de tempestade,
    Desestruturante como a verdade.
    Estou a procurar onde prendê-la porque contida não sairás zunindo por este universo,mas ficará perto de nós para nos dar em escritas como essas
    um pouco mais de você.
    Beijo.

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  3. E sabe...cadê vc?
    Tenho muitas saudades.
    Bj

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  4. Essa é a Monica Sinelli!!!!!!!
    Muito bommmmmmmmmm.
    Bjos
    Alex

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  5. Um verdadeiro escândalo de bonito esse texto.
    Bjs bjs
    Patrícia

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  6. Muito difícil,quase impossível,impossível!
    Que numa cidade deste tamanho ainda ninguém te tenha fisgado para a normalidade e para a felicidade.
    Simplesmente assim.
    Naná

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  7. Você é arrebatadoramente brilhante...

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